quarta-feira, 8 de junho de 2016

A Voz que Nos Rasgou por Dentro


De onde vem - a voz que
nos rasgou por dentro, que
trouxe consigo a chuva negra
do outono, que fugiu por
entre névoas e campos
devorados pela erva?

Esteve aqui — aqui dentro
de nós, como se sempre aqui
tivesse estado; e não a
ouvimos, como se não nos
falasse desde sempre,
aqui, dentro de nós.

E agora que a queremos ouvir,
como se a tivéssemos re-
conhecido outrora, onde está? A voz
que dança de noite, no inverno,
sem luz nem eco, enquanto
segura pela mão o fio
obscuro do horizonte.

Diz: "Não chores o que te espera,
nem desças já pela margem
do rio derradeiro. Respira,
numa breve inspiração, o cheiro
da resina, nos bosques, e
o sopro húmido dos versos."

Como se a ouvíssemos.

Nuno Júdice, in "Meditação sobre Ruínas" 

quinta-feira, 26 de maio de 2016

O amor encarnado no quotidiano - A exposição do Santíssimo


(...)" precisamos de voltar, como crentes, ao mistério da encarnação de Deus em Jesus de Nazaré.
«O Verbo fez-se carne e habitou entre nós» (Jo 1,14). É na pequena custódia da nossa história que o Santíssimo se (nos) expõe. O Mais Alto desce ao mais baixo dos lugares humanos. O Santo não desdenha sentar-se à mesa de pecadores e de mulheres de má vida. O Verbo cala-se na boca de uma criança que ainda tem de aprender a falar e na mudez de um condenado que já não tem direito à palavra. O Todo-Poderoso expõe-se, de facto, à mesquinhez e iniquidade do nosso julgamento. A Vida passa pela dura prova da morte. Atravessa, por isso, com pés de barro, os altos e os baixos da nossa condição, a sua graciosidade e as suas desgraças, as suas linguagens e a sua mudez, a sua fecundidade e a sua esterilidade, a sua justiça e a sua impiedade, a sua fé e a sua desconfiança. Memória e promessa, graça e esforço, silêncio e palavra, confiança e reconhecimento do dom da existência reencontram-se na história do Filho de Deus entre nós. Não o esqueçamos: é na carne e o sangue da nossa humanidade que o encontro entre Deus e cada homem e cada mulher se dá. E (só) assim continua a ser. "

Contemplando Jesus nos Evangelhos — as narrativas do modo como realiza a história da sua liberdade entre nós e o modo como os discípulos o reconhecem como Messias —, saberemos que, com a inteligência dos nossos afetos e com a sensibilidade da nossa inteligência, nada do que é nosso, por mais pobre ou por mais rude que seja, nem nenhuma língua, são indignos de dizer Deus. Se já pela criação tudo tem o toque de Deus, pela encarnação do Verbo, tudo é confirmado como sua bênção. E até os lugares infernais da sua ausência se abrem à possibilidade fecunda da Graça. A vida divina re-passa, de facto, os lugares vazios — todos os lugares — da nossa existência. Mas, contemplando Jesus, saberemos, também, que é na qualidade das nossas relações que, em última instância, se decide o peso da nossa existência. Contra todos os cálculos e expectativas, é na decisão pela vida de um outro, correndo, se necessário, o risco de perder a própria, que a vida divina brilha na nossa. É diante de alguém que tem fome e sede, que está na prisão ou no hospital, que precisa de roupa ou de acolhimento que a vida de qualquer ser humano se decide (lembremos Mt. 25, citação à qual nos convém regressar continuamente). Nestes lugares de periferia, e mesmo sem ser explicitamente reconhecido, Deus encarna-se, tanto no excesso de indigência de quem reclama misericórdia, como no excesso de compaixão de quem a manifesta. O que pareceria impossível é confirmado em Jesus: para cada homem e para cada mulher, crente ou não crente, o que está entre morte e vida — pode ser abismo ou ponte — é um excesso, uma possibilidade de superação de si a favor de um outro. 
(...)

A Exposição do Santíssimo 

 (...) A Eucaristia tudo recolhe. Tudo condensa. Tudo relança. Esta é a sarça que arde sem se consum

ir. É o ícone que, pelas coisas da nossa existência, nos abre, ainda e sempre, a passagem para o que a vida tem de eterno. Vértice e abismo do vínculo de Deus connosco, os gestos e as palavras, os ritmos, as formas, os cantos e os silêncios, as cores e as sombras que fazem a Eucaristia, realizam, aqui e agora, o encontro entre o Eucaristia sagrado e o quotidiano, a minha biografia e a nossa história comum. Assim se desenha um espaço entre nós e entre nós e Deus, no qual a pobreza dos meios e a limitação das formas se tornam lugares da infinita riqueza da Graça.
Neste lugar, tão alto e tão baixo, tão largo e tão extenso, e, porém, tão contido e tão elementar, continuamos a testemunhar como o Absoluto se faz relativo, como o Santíssimo se nos expõe. Aqui e agora, O-sempre-presente restitui-se-nos no que as nossas existências e as nossas coisas têm de mais simples. Reduzido a pão que nem pão parece, a corpo que não se vê, o mistério divino pode tocar-se, partir-se, comer-se. Numa vulnerabilidade inaudita, expõe-se até à nossa desconsideração e ao nosso não reconhecimento. Aqui, o Santíssimo é Deus e é coisa, é Senhor e é servo, é pastor e é cordeiro levado ao matadouro, é dom e é moeda de troca, é grão lançado à terra e é alimento. Inseparavelmente. E, assim mesmo, enquanto se nos dá na pequenez das nossas coisas - no pão das nossas dores e no vinho nas nossas alegrias -, deixa -no espaço para as palavras que haveremos de dizer, para os gestos que haveremos de fazer, para as obras que haveremos de criar, para o corpo que haveremos de ser no concreto do nosso quotidiano e das nossas relações. Como indivíduos. Como comunidade de crentes. Aqui, o que já vimos abre-nos a passagem para o que ainda nos falta ver, o que já conhecemos para o que ainda há de vir, o que já encontrámos para o que ainda desejamos receber. 
A pequena custódia que nos expõe o infinito num pedacinho de pão, não pode não desconcertar-nos. Apercebemo-nos da desproporção? Tão elementar. Tão simples. E, porém, em Jesus morto e ressuscitado, o infinito reclama o pedacinho de pão para se nos dar. É o pouco, mas o necessário, para O-realmente-presente-entre-nós. 
Poderá este lugar, tão humano e tão divino, reclamar menos que o teatro das nossas liberdades e dos nossos sentidos? Diante do Santíssimo assim exposto, somos postos diante duma nudez desarmante. Atrai o olhar e torna-o atento, ferindo-o, porém, na sua volúpia insaciável de imagens. A sobriedade dos gestos e a arte das palavras gera um silêncio, quase seco, que não pode não ferir o palavreado ocioso e violento do linguajar quotidiano, a insensatez e a esterilidade de tantas opções. E, assim, se gera o espaço propício e o ritmo necessário para a palavra criadora, para o gesto fecundo. O corpo que se expõe a ser tocado, comido e saboreado - «Isto é o meu corpo/Hoc est corpus meum»  -  é o mesmo que recusa ser coisa que se faz própria: (Não me tocar/Noli me tangere». Máximo de presença corpórea e máximo de distância indizível).
Da contemplação deste lugar sagrado e da força com que nos deixarmos atravessar por tão desarmante dádiva, germinará a atenção generosa que é própria dos vigilantes; a resposta responsável que é própria dos justos; a fecundidade criadora que é própria dos artistas; a inteligência sensível que é própria dos sábios; a simplicidade de uma vida elementar que é própria dos ascetas; a graça de se definir a partir de um outro que é própria dos místicos.
No quotidiano das nossas existências, no concreto dos nossos ritmos e lugares, o gesto pascal de Jesus retoca os modestos resultados do quotidiano com as grandes esperanças que nos mantêm em vida, o vazio com a abundância inesgotável da Graça, a morte com o Espírito da vida. Comovidos, compreendemos que, aqui, cada coisa, cada fragmento do nosso mundo, cada momento das nossas vidas são resgatados ao seu esquecimento e degradação. E que, todos, são acenos a-Deus, até que Deus chegue a ser tudo em todos.
Diante deste fogo que arde no pão e no vinho, tiramos o calçado. Aqui, aprendemos a ajoelhar-nos. Não para nos rebaixarmos, mas, antes, para nos elevarmos à estatura daquele que se fez O-mais-baixo e, assim, chegarmos mais à altura de nós mesmos e do mistério que a vida é. Será um gesto de amor, profundamente reconhecido, porque o que existe de mais verdadeiro em mim é o que existe entre nós. Será um gesto largo, porque o que existe entre nós é cada encontro humano e cada momento concreto da história. Mesmo que hoje nos pareçam lugares onde Deus não tem lugar, continuam a ser os lugares onde haveremos de reconhecer e de amar O-sempre-presente-entre-nós. Neles, o Santíssimo que se nos dá, expõe-se à nossa disposição de o amarmos com todo o coração. Como nosso Senhor. 

José Frazão Correia sj
"A fé  vive de afeto"

Pintura: Arcabás

domingo, 15 de maio de 2016

Porque tudo tem o seu tempo



Para tudo há um momento e um tempo para cada coisa que  se deseja debaixo do céu:
tempo para nascer e tempo para mor­rer,
tempo para plantar e tempo para ar­ran­car o que se plantou,
tempo para matar e tempo para curar,
tempo para destruir e tempo para edi­ficar,
tempo para chorar e tempo para rir,
tempo para se lamentar e tempo para dançar,
tempo para atirar pedras e tempo para as juntar,
tempo para abraçar e tempo para evi­tar o abraço,
tempo para procurar e tempo para per­der,
tempo para guardar e tempo para ati­rar fora,
tempo para rasgar e tempo para coser,
tempo para calar e tempo para falar,
tempo para amar e tempo para odiar,
tempo para guerra e tempo para paz.


Eclesiastes 3, 1-8

Foto: da amiga Clara

quinta-feira, 12 de maio de 2016

PARA ESCREVER O POEMA


O poeta quer escrever sobre um pássaro:
e o pássaro foge-lhe do verso.

O poeta quer escrever sobre a maçã:
e a maçã cai-lhe do ramo onde a pousou.

O poeta quer escrever sobre uma flor:
e a flor murcha no jarro da estrofe.

Então, o poeta faz uma gaiola de palavras
para o pássaro não fugir.

Então, o poeta chama pela serpente
para que ela convença Eva a morder a maçã.

Então, o poeta põe água na estrofe
para que a flor não murche.

Mas um pássaro não canta
quando o fecham na gaiola.

A serpente não sai da terra
porque Eva tem medo de serpentes.

E a água que devia manter viva a flor
escorre por entre os versos.

E quando o poeta pousou a caneta,
o pássaro começou a voar,
Eva correu por entre as macieiras
e todas as flores nasceram da terra.

O poeta voltou a pegar na caneta,
escreveu o que tinha visto,
e o poema ficou feito.

 NUNO JÚDICE, in A MATÉRIA DO POEMA 

sábado, 30 de abril de 2016

A Forma Justa


Sei que seria possível construir o mundo justo
As cidades poderiam ser claras e lavadas
Pelo canto dos espaços e das fontes
O céu o mar e a terra estão prontos
A saciar a nossa fome do terrestre
A terra onde estamos — se ninguém atraiçoasse — proporia
Cada dia a cada um a liberdade e o reino
— Na concha na flor no homem e no fruto

Se nada adoecer a própria forma é justa
E no todo se integra como palavra em verso
Sei que seria possível construir a forma justa
De uma cidade humana que fosse
Fiel à perfeição do universo 
Por isso recomeço sem cessar a partir da página em branco
E este é meu ofício de poeta para a reconstrução do mundo

Sophia de Mello Breyner  "O Nome das Coisas"
Imagem: agradeço à amiga Clara

quarta-feira, 9 de março de 2016